Síndrome de Asperger – O que é?

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Por Audrey Bueno

A síndrome de Asperger (pronuncia-se “ÁS-per-guer”, por ser a forma usual em inglês, idioma de onde vem a maior parte da literatura sobre o assunto, mas “as-PÉR-guer” também é correto, por ser a forma mais próxima à pronúncia original alemã do nome do médico austríaco Hans Asperger, que foi o pioneiro na identificação e classificação das diversas características da síndrome) é um transtorno do desenvolvimento, de base neurobiológica, sendo considerado um tipo de autismo (existem diversas formas de apresentação do quadro, todos variando em grau de severidade e sintomas).

A última edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Doenças Mentais, o DSM-V, lançada em 2013, passou a utilizar uma única nomenclatura para todos os subtipos, englobando-os genericamente sob o termo “Transtorno do Espectro do Autismo” (TEA), classificando-os apenas quanto ao nível de severidade, visando simplificar a linguagem médica acerca da ampla variação do autismo e aumentar as chances de diagnóstico no intuito de fornecer assistência a mais pessoas autistas. O CID (Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde) é outro manual de classificação de doenças amplamente utilizado pela área médica, em especial na Europa, e o mais utilizado no Brasil. Este manual manteve a nomenclatura de Síndrome de Asperger (sob código F 84.5) dentro dos quadros de autismo de alto funcionamento até sua 10ª edição, que será válida até o final de 2021, mas em sua 11ª edição (CID-11), cuja entrada em vigor está prevista para 1º de janeiro de 2022, acabou-se optando por uma reformulação de termos similar à encontrada no DSM. O código geral para Transtornos do Espectro do Autismo, portanto, não será mais F 84 (autismo genérico, em especificações), e sim 6A02.

Essa mudança na nomenclatura trouxe vantagens e desvantagens. Dentre as vantagens, está a simplificação da identificação da condição, recebendo um diagnóstico de autismo aquele que apresenta déficits nas áreas da socialização e comunicação, bem como a presença de comportamento restrito e repetitivo. A diferença passou a ser basicamente em termos de níveis de comprometimento em cada uma dessas áreas. Isso tornou mais fácil aos profissionais identificarem o transtorno e, consequentemente, oferecerem apoio terapêutico.

Dentre as desvantagens, está a não mais observância de aspectos diferenciais especificamente entre duas das formas de manifestação de autismo mais comuns entre si: a síndrome de Asperger e o autismo clássico leve. Ambos os quadros são considerados “autismo de alto funcionamento” e a proposta terapêutica é mais parecida do que diferente nessas duas expressões do autismo. Porém, existem diferenças que influenciam o prognóstico e as características mais marcantes do indivíduo, que são relevantes não somente do ponto de vista da identidade que estas pessoas desenvolvem, como em relação ao seu funcionamento social.

Um determinado conjunto de traços em comum entre pessoas com a síndrome de Asperger criou uma comunidade de pessoas que se identificam como “Aspies”, maneira informal de se referir a alguém com a síndrome de Asperger. Diversos desses traços não estão presentes na pessoa com a manifestação clássica leve de autismo. Por exemplo, estudos apontaram que pessoas com a síndrome de Asperger tendem a um prognóstico melhor, alcançando maior desenvolvimento funcional, que seus déficits comunicativos tendem a ser menores na vida adulta e que o estilo de seus interesses tende a ser diferenciado, geralmente voltado para alguma área específica, em que podem, inclusive, desenvolver-se profissionalmente, em comparação a pessoas com autismo clássico leve, que teriam interesses mais genéricos e menos aprofundados em alguma área e menor desenvoltura social e funcional. Além disso, pessoas com a síndrome de Asperger não costumam ter atraso de linguagem (fator circunspecto à infância, pois na vida adulta essa diferença deixa de existir) e o QI varia de normal a acima da média. Não é regra, mas é muito mais frequente do que não que pessoas com a síndrome de Asperger tenham QI acima da média, e isso costuma fazer com que compartilhem desafios similares aos de pessoas superdotadas, o que as enquadra num diagnóstico conhecido como “Dupla Excepcionalidade“, enquanto pessoas com autismo leve clássico dificilmente têm esse tipo de questão se sobrepondo ao seu funcionamento, uma vez que seu QI geralmente esteja situado na esfera considerada dentro da média normal e isso signifique que não terão que lidar com certas particularidades próprias de pessoas com alto QI.

Assim, criou-se uma confusão na população geral sempre que alguém utiliza o termo “síndrome de Asperger”, onde as pessoas prontamente informam que “a síndrome de Asperger não existe mais”. Essa colocação é, na verdade, um equívoco, pois as características específicas da pessoa com síndrome de Asperger continuam a existir e a serem importantes em trabalhos terapêuticos mais aprofundados e para fins de autoconhecimento. O que não existe mais – e isso sempre pode mudar ou voltar ao que era em edições futuras do DSM – são nomenclaturas específicas para os “tipos” de autismo, que agora são apenas classificados como “autismo”, de modo geral, e a especificação atual é apenas para o grau de severidade do quadro. O objetivo dessa alteração de classificações nos manuais diagnósticos é “otimizar, enxugar” os múltiplos critérios de avaliação para algo mais sucinto, centralizado, focando apenas nos principais aspectos, de modo a facilitar a identificação da presença do transtorno do espectro autista, independentemente de suas variações, reduzindo o risco de que a pessoa não receba ao menos a indicação terapêutica essencial para sua condição.

Uma analogia que podemos fazer sobre essa nova classificação é pensar em “árvores”, por exemplo: na versão anterior, os tipos de galhos, os formatos variados das folhas, a espessura de cada tronco e outras características estavam detalhadamente descritos para que se chegasse à conclusão de que tratava-se de uma árvore. Na nova versão, o detalhamento não é mais tão amplo, ou seja, se as características centrais de todas as árvores estão presentes – se há tronco, galho e folhas – então são reconhecidas como árvores e todas precisarão de certas coisas em comum, como sol e água, para terem as mínimas condições de desenvolvimento. No entanto, caso certos cuidados precisem ser aprofundados, então o detalhamento será importante, pois cada tipo de árvore florescerá melhor com seu tipo específico de adubação, que não será exatamente o mesmo para todas as espécies.

Dadas as particularidades no funcionamento de pessoas com a síndrome de Asperger, o termo foi compreensivelmente incorporado à identidade dessas pessoas, de modo que ouvirem que “Asperger deixou de existir” passou a ser danoso e incômodo. No entanto, é preciso diferenciar o que um termo significa num manual médico que visa tratamento e o que significa enquanto entendimento do funcionamento de cada um, e, nesse sentido, a síndrome de Asperger segue existindo em suas singularidades. Por fim, é também preciso levar em conta o que atende mais pessoas da melhor maneira, ou seja, é melhor que mais pessoas que estejam no espectro do autismo tenham a chance de identificar sua condição e receber um apoio de base do que reduzirmos a possibilidade de atender algumas delas. De qualquer maneira, talvez o ideal não tivesse sido a remoção do termo “Asperger”, e sim que tivesse sido mantido como condição diversa do autismo clássico ou que fosse apresentado como subitem de variação do autismo clássico com nível 1 de severidade, pois a síndrome de Asperger reúne traços específicos suficientes para compor sua própria descrição.

Uma observação: considerações recentes acerca da terminologia que deva ser empregada ao referir-se a pessoas com algum tipo de deficiência propõem que termos como “alto” ou “baixo” funcionamento sejam evitados e que, independentemente do quadro específico, o ideal seja se referir a alguém no espectro do autismo apenas como “pessoa autista”. Infelizmente, terminologias perfeitas ainda inexistem, afinal, nem sempre um termo socialmente construído descreve a funcionalidade de um organismo nos termos médicos necessários para o entendimento da condição, informação necessária para a indicação terapêutica correta. Portanto, no contexto clínico, “baixa funcionalidade” não significa “baixo valor”, como muitos podem social ou emocionalmente interpretar, e sim “baixo nível operacional”, em sentido restrito ao que um organismo tem dificuldade em realizar. Assim, para o contexto médico, seria o mesmo que dizer que alguém tem “pressão baixa” ou “baixa contagem de glóbulos brancos”. De qualquer modo, fora do contexto clínico, é importante observar quais termos são os mais socialmente confortáveis para a pessoa em cujo transtorno se manifesta.

Por fim, ainda falando em nomenclaturas, temos um problema quando se fala em “autismo leve”. Erroneamente, ao ouvir tal termo, as pessoas tendem a achar que a pessoa “não tem praticamente nada”, sem atentar para o fato de que a classificação entre leve, moderado e severo é feita em comparação às pessoas autistas entre si, e não em relação às pessoas neurotípicas, ou seja, sem autismo. O termo “neurotípico” significa “de funcionamento neurológico típico/comumente encontrado na população”. Desse modo, a perspectiva muda. As dificuldades existentes, mesmo na parte mais leve do espectro, afetam significativamente a vida do indivíduo, causam sofrimento, adversidades e justificam a necessidade de algumas  adaptações que atendam suas necessidades especiais, motivo pelo qual a lei reconhece e concede adaptações a pessoas autistas independentemente do seu nível de severidade. As adversidades não são quantitativas, e sim qualitativas, e existem em todas as manifestações do amplo espectro do autismo. Isso significa que os desafios sempre existem, mas são de natureza diferente, sendo, portanto, de difícil comparação. Um autista severo tem, sem dúvida, maior prejuízo funcional que um autista considerado leve, porém, o autista leve terá prejuízos que não fazem parte do universo do autista severo.

Prevalência do Autismo

Cerca de 1% da população mundial tem autismo. Não há, ainda, estatísticas oficiais que indiquem quantas dessas pessoas se encaixam no perfil equivalente à síndrome de Asperger, porém estima-se algo em torno de 0,3%. Meninos são quatro vezes mais propensos ao autismo que meninas (4:1), embora essa estatística venha mudando e sendo questionada, dada a variação de traços entre pessoas do sexo masculino e feminino com a síndrome de Asperger e o fato da maior parte da literatura ter sido , até hoje, embasada em homens, o que leva a um desconhecimento das particularidades da síndrome em mulheres e consequente subdiagnóstico.

Os primeiros estudos acerca da prevalência do autismo, nas décadas de 60 e 70, sugeriam uma ocorrência entre 2 e 4 casos para cada 10.000 crianças. À medida em que houve a expansão dos critérios diagnósticos para o autismo, a partir das décadas de 80 e 90, sua prevalência sofreu aumento dramático. Em 2002, a estimativa era de 6 a 7 casos para cada 1.000 crianças, número que praticamente duplicou em 2016, quando a prevalência já considerava cerca de 6 a 7 casos para cada 480 crianças (uma média de 1 em cada 68 crianças).

Especula-se que a causa desse aumento não se deva necessariamente a um maior número de indivíduos acometidos, e sim a uma maior conscientização e consequente capacidade de reconhecimento da sintomatologia do autismo, tanto pela população geral como pela própria comunidade médica, pois pesquisas recentes têm demonstrado como é grande a variação de sintomas, bem como de seus níveis de severidade, introduzindo o conceito de “espectro” (que será abordado mais abaixo).

Assim, diferentemente do que ocorria no passado, casos mais leves, que por muitos anos passaram despercebidos ou permaneceram encobertos por diagnósticos imprecisos e inadequados (como Transtorno Bipolar, Transtorno Borderline, TOC, dentre outros), são agora reconhecidos, fazendo com que muito mais pessoas sejam identificadas como pertences ao espectro autista.

Quanto ao nível cognitivo, estima-se que 56% das crianças autistas tenham prejuízo intelectual (31% com QI menor ou igual a 70 e 25% com QI limítrofe entre 71-85), enquanto os 44% restantes apresentam QI acima de 85. Desses 44%, embora não haja dados oficiais que determinem com mais precisão as faixas de QI nesse grupo, existem hipóteses acerca de 10% com QI entre 85 e 100 (a saber: 100 é o QI médio da população geral), 20% com QI entre 100 e 127 e 10% com QI acima de 127.

10% dos autistas podem apresentar um quadro conhecido como ‘síndrome de Savant”, em que o QI total costuma estar abaixo de 85, porém existe alguma super habilidade isolada, geralmente relacionada à surpreendente memória (como decorar músicas e reproduzi-las após tê-las ouvido apenas uma vez, memorizar uma lista telefônica ou calendários) ou habilidade com cálculos “de cabeça” envolvendo muitos dígitos.

Cerca de 1/3 das crianças autistas são não-verbais e um número similar tem epilepsia.

Quanto às comorbidades, entre 40 e 60% das pessoas autistas têm TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade). Cerca de 40% têm Transtornos de Ansiedade e em torno de 26% têm Depressão. Estimativas quanto a outras comorbidades no autismo, tais como TOC (Transtorno Obsessivo Compulsivo), Síndrome de Tourette, Transtorno Opositor Desafiador e Transtorno Bipolar não são conhecidas, mas são bastante frequentes nessa população.

Observando Melhor o Autismo

O autismo é conhecido pela sigla TEA – Transtorno do Espectro Autista (ASD – Autistic Spectrum Disorder, em inglês). Trata-se de um transtorno do desenvolvimento inserido como subcategoria dentro de uma classe mais ampla de distúrbios, conhecida como TID – Transtornos Invasivos do Desenvolvimento, sendo geralmente percebido nos primeiros três anos de vida da criança.

“De acordo com o DSM, o autismo refere-se a um transtorno no qual a pessoa manifesta as seguintes características: prejuízos na interação social, problemas de comunicação e atividades e interesses repetitivos, estereotipados e limitados.” (Whitman, 2015)

Ou seja, o autismo afeta principalmente três áreas do desenvolvimento:

• Interação social

• Comunicação

• Comportamento

O autismo é frequentemente chamado de síndrome porque é composto de um conjunto de características, e não por um único sintoma. Para ser diagnosticada como autista, a pessoa deverá apresentar déficits nas 3 áreas acima listadas e ao menos 6 dos sintomas descritos pelo DSM antes dos três anos de idade.

Os sinais de autismo clássico costumam ser mais evidentes e, por isso, são percebidos mais cedo (por volta dos 2 anos de idade há sintomas claros), enquanto os sinais da síndrome de Asperger, menos aparentes, costumam ser percebidos um pouco mais tarde, por volta dos 3 ou 4 anos de idade, especialmente no contexto escolar, que é quando a socialização com os colegas de mesma idade pode ser melhor observada. No entanto, para um observador experiente, aos 3 anos já se notam diversos sintomas. É muito comum que crianças com a síndrome de Asperger passem pelos primeiros anos escolares sem um diagnóstico, que quase sempre é obtido apenas em torno dos 6 ou 7 anos de idade, quando os sinais de dificuldade social e/ou de participação na rotina escolar se tornam amplamente evidentes, e quando o ingresso no Ensino Fundamental amplia a percepção das diferenças entre a criança Asperger e os colegas.

Os principais fatores responsáveis pelo atraso na identificação da síndrome de Asperger são: a) a falta de informação mais aprofundada sobre o quadro; b) a visão estereotipada acerca do autismo (inclusive entre profissionais); c) o fato da criança não ter prejuízo da fala ou intelecto, causando nas pessoas a impressão de que a criança não tem “nada demais”.

“As estimativas são de que 10% dessas crianças recebam o diagnóstico aos 4 anos, 50% entre 5 e 10 anos, 20% entre 10 e 12 anos e os 20% restantes somente após a adolescência.” (Marie Hartwell-Walker)

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É espantoso que tais crianças cheguem à adolescência sem um diagnóstico, pois apresentam características muito peculiares desde a primeira infância.

No entanto, como um breve contato no consultório médico muitas vezes não é suficiente para que se observem os comportamentos habituais da criança e existe a crença popular de que “mães exageram nas preocupações”, o médico não raro ouve o que a família relata com certo desdém.

Alguns profissionais menos preparados menosprezam totalmente as preocupações trazidas à consulta pelos pais, o que pode resultar no assunto sendo varrido para debaixo do tapete por anos a fio, causando enorme prejuízo à criança e família, que acabam recebendo o auxílio necessário muito tardiamente. Infelizmente, esses tipos de relato são muito comuns nas famílias cujos filhos mais tarde foram diagnosticados no espectro do autismo. A mãe costuma ouvir de parentes (e tristemente até mesmo de profissionais) que “está louca” ou que está “procurando doença no filho”. Existem escalas de avaliação de traços de autismo (que são questionários simples de serem respondidos e pontuados) que todo profissional deveria preencher com os pais em caso da mínima dúvida ou mesmo como checagem habitual numa consulta pediátrica, como é feito em alguns países. As escalas mais usadas são a ATA e a CARS (disponíveis aqui mesmo neste blog, seguindo os links sobre cada sigla), que até mesmo os pais podem preencher por conta própria caso tenham alguma suspeita e levarem-nas já preenchidas numa próxima consulta para auxiliar a investigação.

A Criança com Síndrome de Asperger

Padrão de brincadeira autismo pré-escola

Foto: crianças na faixa etária de aproximadamente 3 anos, em sala de atividades de pré-escola, em momento de brincadeiras livres; a criança indicada na seta foi mais tarde diagnosticada com a síndrome de Asperger e QI acima da média; nesta foto, podemos observar o padrão metódico de sua brincadeira (observe os potes coloridos todos agrupados e organizados, bem como o tipo de brinquedo escolhido dentre as diversas opções na sala, mostrando preferência por itens padronizados – o padrão é um tipo de repetição, e repetições estão presentes de muitas formas no autismo, o que explica porque muitas pessoas autistas gostam de ter coleções de diferentes tipos de um mesmo objeto – moedas, selos, pedras, tampinhas, etc.); esse tipo de brincadeira pode ser observado no autismo de maneira geral e o que diferenciou a síndrome de Asperger foi a ausência de prejuízo ou atraso na fala e na cognição; o relato escolar no período revelou que a criança brincou de organizar os potes por longo tempo (além de examiná-los minuciosamente), tendo sido este o aspecto principal da brincadeira (organizar apenas, sem uso dos potes com algum significado, contexto ou função, e de forma repetitiva, recolhendo e reorganizando tudo novamente muitas vezes); a brincadeira também ocorreu sempre de forma individual e hiperfocada (= atenção hiper concentrada apenas na própria brincadeira e nos objetos/potes, sem observar/perceber/interagir com o entorno ou com as outras crianças). Observações:

  1. Na segunda infância, a criança na extremidade mais leve do espectro já inclui seus objetos de interesse em contextos mais funcionais e simbólicos concretos (por exemplo, os potes se tornariam montanhas, insetos, bolos numa padaria, etc.), diferentemente da criança com maior nível de severidade no autismo, que tende a continuar a brincar com os objetos que gosta apenas pelo prazer de manusear o objeto em si (predomínio do sensorial), sem que estejam inseridos em algum contexto.
  2. A presença de um ou outro traço apenas (por exemplo, um certo tipo de brincadeira) não é suficiente para diagnosticar o autismo. É a somatória de traços/sintomas observados que compõe um diagnóstico. Além disso, há de se considerar as duas palavras-chave para diagnósticos de autismo, que são a frequência e a intensidade com que um determinado comportamento acontece. No exemplo acima, qualquer criança – com ou sem autismo – poderia ter brincado com os potes. É comum que pessoas que conheçam pouco o autismo questionem observações iniciais de que a criança possa ter o transtorno tentando normatizar o comportamento: “Ah, mas todas as crianças na sala gostam desses potes, porque são coloridos, etc.”. A diferença é por quanto tempo se brinca ou quantas vezes se busca um mesmo tipo de interesse ao brincar, qual a intensidade desse interesse (há hiperfoco nele que a criança nem perceba seu nome sendo chamado diversas vezes?) e quais aspectos simbólicos ou sociais compõem a brincadeira com os potes.

“Para muitas pessoas, num primeiro momento, uma criança com síndrome de Asperger não parecerá diferente de qualquer outra, mas um olhar mais atento revelará que não é exatamente assim. As crianças com Asperger são socialmente atípicas de maneiras difíceis de entender. Elas geralmente têm interesse obsessivo em um assunto específico, dificuldade em compreender as nuances de interação social, bem como as emoções de si próprias e dos outros, pensamento rígido e metódico, com a presença de comportamentos repetitivos e ritualísticos, além de sensibilidade sensorial excessiva a estímulos tais como sons, roupas ou alimentos, por exemplo.” (CAMARGOS, Walter Jr., 2013)

Movimentos estereotipados (como balançar-se para frente e para trás ou abanar as mãos no ar) são bem menos frequentes que no autismo clássico, mas podem ocorrer, especialmente em picos de ansiedade.

Crianças com síndrome de Asperger têm inteligência normal ou acima da média. São comuns quadros de superdotação intelectual associados à síndrome, configurando um termo diagnóstico ainda pouco conhecido: Dupla Excepcionalidade (clique aqui para saber mais).

Das três principais áreas afetadas pelo autismo (interação social, comunicação e comportamento), a comunicação é a menos afetada em crianças com síndrome de Asperger. Porém, aqui, precisamos compreender melhor o que seja a comunicação. Existe uma diferença entre os termos “linguagem” e “comunicação“.

A linguagem é o código que usamos para estabelecer uma comunicação, como o gesto, a escrita, a pintura ou fala, por exemplo. “Lingua” é uma palavra do latim que significa “língua, órgão localizado na boca”. Daí derivou-se a palavra “linguagem”, por ter sido a fala a primeira e mais espontânea forma de comunicação da nossa espécie. Para a finalidade desse texto, entenderemos a linguagem, portanto, como produção verbal. Assim, a capacidade de produzir a fala, de articular e pronunciar as palavras de maneira inteligível e fluente é um instrumento para a comunicação.

A comunicação tem um conceito diferente do de linguagem. “Communicare” é uma palavra do latim que significa “tornam comum, partilhar”. Portanto, comunicar significa compartilhar, expressar, tornar público, conhecido do outro, um sentimento ou pensamento, estabelecer trocas de informação, ou seja, diálogos satisfatórios e funcionais em que se transmitam e recebam mensagens, com o uso de uma ferramenta de linguagem, como a fala.

Em resumo, para o objetivo do nosso texto, linguagem é o ato de falar e comunicação é a troca de mensagens bem sucedida entre duas ou mais pessoas.

Crianças com a síndrome de Asperger não costumam apresentar atraso na fala ou problemas na articulação das palavras em si, e muitas delas são inclusive precoces na aquisição da fala, tendo um vocabulário mais avançado e até mesmo sofisticado em relação ao esperado para a faixa etária, o que costuma impressionar os adultos, que se espantam quando dizemos que esta criança tem “problemas na comunicação”. Porém, o que muitas pessoas (e inclusive diversos profissionais não especialistas em comunicação) genericamente entendem por ‘comunicação’ é, na verdade, um equívoco, pois geralmente estão se referindo à ‘fala’, e não à comunicação propriamente dita.  Ao mesmo tempo em que estas crianças são verbalmente fluentes, ou seja, com a fala não só preservada como geralmente precocemente desenvolvida, sua habilidade comunicativa apresenta déficits.

Os principais problemas de comunicação de pessoas com Asperger são de natureza “semântica¹” e “pragmática²”.

¹ Semântica: significado e interpretação das palavras.
² Pragmática: uso prático, funcional, da comunicação no convívio social.

Dentre as dificuldades pragmáticas, ou seja, do uso da linguagem como função social, estão: a dificuldade em estabelecer diálogos eficientes, transmitindo e compreendendo sentimentos e pensamentos de maneira adequada, ouvir o que o outro tem a dizer mesmo que fuja do seu assunto especial de interesse, perceber que seu discurso tornou-se um monólogo ou que o outro não tem interesse no tópico em questão e demonstra cansaço ou desejo de interromper a conversa, interrupção do diálogo de forma brusca e repentina, deixando o outro a falar sozinho, dizer coisas como se a outra pessoa já soubesse do que se trata sem que tenha havido introdução apropriada ou fazer menções inadvertidas que soem rudes ou impróprias para o contexto. Podem ter dificuldade em dizer “oi” e “tchau”, em respeitar turnos numa conversa (interrompem, querem ser as únicas a falar, etc.), em responder ao que lhe é perguntado de maneira adequada (por exemplo, se lhe perguntam sobre o que fez no fim de semana, não fornecem a informação pedida e falam sobre outra coisa) ou  podem dizer coisas sem sentido para o contexto (às vezes fruto de ecolalia tardia), por exemplo. Por fim, podem ter dificuldade em comunicar assertivamente o que sentem ou necessitam, por exemplo: se um barulho incomoda, podem simplesmente engajar num comportamento repetitivo ou passar a agir de forma irritadiça sem comunicar a causa do desconforto. Ou seja, embora tenham plena capacidade verbal, não conseguem estabelecer uma comunicação efetiva.

Muitas também têm problemas com a linguagem semântica, que se refere ao significado e interpretação das palavras em seus vários sentidos, o que as faz ter uma compreensão literal de piadas, expressões ou figuras de linguagem, ou interpretar erroneamente o sentido de um texto ou história. Ouvir que “o gato comeu a língua de alguém” pode gerar pânico e ouvir a música infantil “atirei o pau no gato” pode causar horror e indignação.

Muitas dessas dificuldades tendem a melhorar bastante com a idade, pois o aprendizado social avança a cada ano, de modo que tais dificuldades sejam mais claramente percebidas na infância, embora algumas delas perdurem até a vida adulta.

Algumas pessoas com Asperger podem apresentar uma alteração do ritmo e entonação da fala, de forma que as outras pessoas tenham a impressão da fala ser excessivamente formal, estranha ou monótona (ou seja, ocorrendo em um só tom, sem “movimento”).

A habilidade em compensar dificuldades pode ser maior em caso de presença de alto QI, dificultando, por vezes, o diagnóstico de TEA (Transtorno do Espectro Autista), quando as características do autismo acabam ficando mascaradas pela capa de aparente “normalidade” da pessoa, confundindo o médico e levando-o a questionar se o quadro é de autismo, de fato.

No entanto, um médico bem informado sobre o espectro do autismo, em especial quanto ao autismo de alto funcionamento (como Asperger) e às nuances da dupla excepcionalidade (para os casos em que a superdotação ocorre conjuntamente) saberá identificar os sinais de TEA.

A maior habilidade em mascarar alguns traços de TEA não significa, no entanto, que as dificuldades sejam menores ou menos difíceis de se lidar, pois, na maioria das vezes, por baixo da capa existe um conjunto de inabilidades e sofrimento considerável. O esforço excessivo por enquadrar-se na norma esperada pode levar a outros transtornos psiquiátricos, sendo os mais frequentes a depressão e a ansiedade. Estes transtornos podem manifestar-se através do TOC (ou piora, caso já exista), fobias (sendo a fobia escolar ou social muito comuns), síndrome do pânico, transtorno do stress pós-traumático, burnout, “ressaca social” com grande necessidade de isolamento para que se recupere da tensão causada por longos períodos de socialização, aumento da irritabilidade e instabilidade de humor e até mesmo pensamentos suicidas. Algumas crianças com Asperger podem manifestar tais comorbidades desde muito cedo, mas a intensidade costuma elevar-se com o passar dos anos, dado o aumento da pressão e das expectativas sociais da vida, especialmente se a criança não tiver tido apoio às suas dificuldades anteriormente.

A presença de alto QI, embora de grande ajuda por um lado, pode intensificar os problemas citados no parágrafo anterior. Assim como em pessoas sem autismo, mas com QI elevado, é comum um tipo específico de depressão conhecido como depressão existencial (para saber mais sobre esse tipo de depressão, acesse aqui).

Os Vários Tipos de Autismo

Embora atualmente a literatura médica tenha optado por simplificar o conceito de autismo ao alocar suas diferentes apresentações sob um mesmo ‘guarda-chuva’, diferenciando-os essencialmente pelos níveis de severidade, os tipos de autismo que, até então, costumavam ser observados eram:

Transtorno Autista – termo mais amplo, quase sempre utilizado para referir-se ao autismo clássico, e que pode se manifestar de forma leve, moderada ou severa. É geralmente o tipo a que o termo “autismo” mais se refere. Cerca de 70% dos indivíduos nessa categoria têm algum grau de atraso mental e em torno de 50% nunca desenvolvem a fala.

Transtorno de Rett – é um quadro severo. No passado, este transtorno era compreendido como uma forma de autismo, porém, os manuais médicos mais recentes o consideram como um transtorno à parte, não mais pertencente ao espectro do autismo. Ainda assim, é frequente que a criança com Transtorno de Rett seja diagnosticada como autista.  Apenas meninas costumam ser diagnosticadas com o Transtorno de Rett, pois meninos geralmente apresentam uma forma mais grave do quadro, não resistindo para além do primeiro ou segundo aniversário. Estima-se que em cerca de 50% das meninas brasileiras afetadas pela Síndrome de Rett, o diagnóstico clínico seja equivocado. O desenvolvimento costuma ser normal até por volta dos oito ou doze meses de idade, quando, então, passam a ser observadas perdas na coordenação, movimentos e fala. Os sintomas podem se estabilizar por anos e, embora não haja cura, há tratamentos que ajudam a melhorar a qualidade de vida. Não é uma condição genética, e sim decorrente de mutação no gene MECP2, no cromossomo X.

Transtorno Desintegrativo da Infância – difere do autismo clássico por haver desenvolvimento normal até os 2 anos, para somente a partir de então apresentar regressão.

TID-SOE (PDD-NOS, em inglês) – Transtorno Invasivo do Desenvolvimento – Sem Outra Especificação – é a nomenclatura empregada nos casos em que a criança apresenta diversos sintomas autistas, geralmente de maior gravidade, mas o aparecimento dos mesmos é tardio e não preenchem todos os critérios convencionais do autismo. Algumas vezes, essa categoria acaba sendo indevidamente aplicada aos diagnósticos quando a sintomatologia apresentada pela criança é atípica e de difícil inserção nas demais classificações.

Síndrome de Asperger – difere do autismo clássico por não haver prejuízo intelectual ou de linguagem e ser sempre de grau leve, havendo, no entanto, dificuldade nas esferas social e ocupacional. É muito comum que pessoas com Asperger tenham “dupla excepcionalidade”, especialmente na forma da presença de alto QI que configure quadro de superdotação intelectual associado à síndrome.

Embora a síndrome de Asperger seja uma forma de autismo, é um quadro diferente do autismo clássico, que é o tipo que a maioria das pessoas conhece. Por isso, inclusive, é comum que a primeira reação das pessoas seja não acreditar que a criança seja autista, afinal, existe uma associação equivocada do senso comum que acha que pessoas com desordens mentais ou neurológicas tenham necessariamente prejuízos evidentes,  que são justamente coisas que crianças com Asperger não têm. Crianças autistas podem ser muito inteligentes e não possuem traços físicos que sinalizem a condição. Por isso, é comum que suas dificuldades não sejam percebidas em contatos mais rápidos e superficiais, pois a sintomatologia não é óbvia e é preciso uma análise mais prolongada e atenta do comportamento para que identifiquem os traços da síndrome.

“Apesar de fazer parte do espectro autista, a Síndrome de Asperger possui características bastante diversas do autismo”. (Walter Camargos Jr., psiquiatra – 2013)

O Conceito de Espectro do Autismo

O termo “autismo” não é mais compreendido como uma única coisa, ou seja, como um conjunto fixo de características que fariam com que toda pessoa autista apresentasse sempre os mesmos comportamentos e dificuldades. Atualmente, o autismo é compreendido a partir do conceito de “espectro”, devido à ampla gama de variações que a condição pode apresentar. Isso significa que nenhum autista é exatamente igual ao outro e que podem, inclusive, ser incrivelmente diferentes.

Uma boa analogia para compreender melhor a ideia é o espectro de cores, que vai do violeta, passando pelo azul, verde, amarelo, laranja, até o vermelho, em suas infinitas tonalidades, sem que seja possível determinar exatamente onde começa uma cor e termina outra. Cada uma dessas cores poderia representar, de forma análoga, as infinitas variações existentes no espectro autista, indo da forma mais suave à forma mais severa de dificuldades e comprometimentos, sem que haja uma clara linha divisória entre essas variações.

Espectro, portanto, é uma palavra que designa as “nuances” de um mesmo elemento.

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Ainda utilizando a analogia do espectro de cores, se pensarmos apenas em termos de severidade do quadro – desconsiderando as variações existentes quanto à sua natureza –, a Síndrome de Asperger estaria na área violeta-azulada, representando o lado leve do espectro, enquanto o autismo clássico, em suas manifestações mais severas (tais como prejuízo ou ausência da fala, deficiência intelectual ou movimentos estereotipados, por exemplo), estaria na área laranja-avermelhada, que representaria o extremo oposto do espectro.

Símbolo do infinito em arco-íris: representa a diversidade dentro do espectro autista

Existem 3 níveis de severidade no autismo, sendo 1 o mais leve, 2 o nível médio/moderado e 3 o grau mais severo. O termo técnico aplicado à Síndrome de Asperger nos manuais médicos antes da reformulação que agora a unificou ao espectro do autismo como um todo era: Desordem do Espectro Autista de Nível 1, sem a presença de prejuízos intelectuais ou verbaisSíndrome de Asperger. Tal adendo (sublinhado) deixará, portanto, de ser utilizado, bem como seu código no CID: F84.5.

Apenas relembrando, O CID (sigla para o manual de Classificação Internacional de Doenças) é um sistema de classificações usado pela área médica em geral que fornece um código que ajuda a descrever e especificar exatamente a qual patologia (transtorno, distúrbio ou doença) o médico se refere ao emitir um documento diagnóstico. Convênios, por exemplo, sempre exigem que o médico coloque o código do CID em laudos médicos para sua completa validação.

Assim, quaisquer subtipos do espectro do autismo serão classificados de forma genérica como sendo todos pertencentes aos “Transtornos Globais do Desenvolvimento (TGO)” ou “Transtornos do Espectro do Autismo (TEA)”, duas nomenclaturas para a mesma coisa – sob um único código no CID: F84 (que passará a ser 6A02 a partir de 2022). As classificações de variações serão somente quanto à severidade: Níveis 1, 2 e 3.

Mitos e Estereótipos

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Existem muitos mitos sobre o que seja, de fato, o autismo. A mídia contribuiu para divulgar uma imagem da pessoa autista que pouco tem a ver com a realidade, e que mostra características pertencentes apenas a um pequeno grupo de pessoas com o transtorno, como é o caso do filme Rain Man (de 1988, com Dustin Hoffman e Tom Cruise), que retrata um caso mais raro de autismo conhecido como Síndrome de Savant, em que existe uma super habilidade intelectual aliada a um déficit de inteligência significativo, como é o caso de pessoas que podem fazer cálculos absurdamente difíceis em segundos ou memorizar toda a lista telefônica, por exemplo, mas têm grande dificuldade em lidar com as coisas mais simples do dia a dia, como amarrar os sapatos ou preparar uma xícara de chá, e estão geralmente na extremidade mais severa do espectro. Esse quadro tão amplamente difundido pela mídia corresponde a menos de 10% dos casos de autismo.

A indústria do entretenimento, com seu caráter sensacionalista, tem preferência por retratar apenas os casos mais severos de autismo, em que a pessoa apresenta comportamentos impactantes, e é esse tipo de panorama que constitui o que a maioria das pessoas acabará conhecendo sobre autismo.

Assim, as pessoas acreditam em estereótipos, ou seja, em falsas ideias do que seja o transtorno autista, como, por exemplo, que indivíduos que estejam no espectro do autismo não sejam capazes de estabelecer contato visual, não gostem de contato físico, como o beijo ou o abraço, não façam faculdade, não casem e nem tenham filhos ou um emprego. Imaginam que a pessoa autista passe a maior parte do tempo abanando as mãos num canto da sala, esteja completamente alheia ao mundo à sua volta e tenha atraso mental grave que inviabilize qualquer aprendizado. Tal descrição não corresponde à realidade muitas vezes, e menos ainda quando se trata da extremidade leve do espectro.

Esses estereótipos e mitos difundidos pela mídia, aliados à falta de informação de uma condição que só agora começa a ser melhor estudada, compreendida e disseminada, estão por trás de frases como “Essa criança não parece autista!” ou “Essa criança não tem nada, isso é coisa da sua cabeça! ”, frases que pais de crianças com autismo (principalmente se o filho estiver no lado leve do espectro, como é o caso da síndrome de Asperger) ouvem com muita frequência, infelizmente, às vezes, do próprio médico que, se não for um especialista no assunto – como muitas vezes não é – , acaba não sendo capaz de reconhecer os sinais menos óbvios do transtorno, adiando, assim, o auxílio de que aquela criança e família tanto necessitam. As preocupações desses pais são tratadas com descrédito não só pelos próprios médicos, mas também por familiares e escola, ou seja, a falta de informação e a crença em estereótipos dificultam o reconhecimento do quadro.

Interpretações Errôneas do que as Pessoas Veem

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As pessoas interpretam muita coisa de forma equivocada e se fixam na própria percepção acreditando ser esta a verdade absoluta, julgando rápido sem procurar conhecer melhor.

É comum que os avós (e outras pessoas) que já criaram vários filhos digam que a criança é apenas geniosa, tímida ou até mesmo mimada, muitas vezes culpando os pais pelo comportamento da criança. Não é difícil classificarem a seletividade alimentar da criança como “frescura”, o não querer enturmar-se com as crianças da mesma idade como “timidez”, as birras como “gênio forte” e “falha dos pais na educação”, as sensibilidades múltiplas como “manha”, o brincar repetitivo, sempre da mesma coisa, como “gostar muito de tal brincadeira” e os (muitos) momentos em que a criança não responde quando chamada como “estar muito distraída com o desenho ou brinquedo”.

Na tentativa de dar sentido ao comportamento que observam, algumas pessoas podem achar que a criança tenha sofrido algum tipo de trauma que explique as reações emocionais exageradas, a dificuldade de interação social, a evitação ou hipersensibilidade ao toque e mesmo os comportamentos de autoagressão (em que a criança machuca a si mesma, batendo a cabeça na parede, cutucando a própria pele, se mordendo, se arranhando, etc.), que são, na verdade, todas características comuns no autismo.

A escola, por sua vez, tenderá a achar que não existem motivos para maiores preocupações. Poderão reconhecer o comportamento da criança como excêntrico, reservado, egoísta ou mesmo excessivamente sensível (“mimado” ou “manhoso” são adjetivos frequentemente usados pelos funcionários da escola), mas, ao mesmo tempo, tais características não serão vistas como reais problemas, uma vez que o rendimento acadêmico esteja a contento (comum no autismo leve, uma vez que a inteligência não é afetada), não haverá queixas de mau comportamento e a criança tenderá a ser percebida como bastante inteligente, o que geralmente passa a impressão de estar “tudo ótimo”.

Além do mais, o relacionamento social da criança com Asperger pode ser bastante satisfatório com os adultos, de forma que não classifiquem a criança como tendo “problemas de interação social”, ao menos não na primeira infância, até que essa dificuldade social se torne óbvia por volta dos 6 ou 7 anos, que é geralmente quando a escola percebe que algo está errado, pois a discrepância entre o comportamento social de crianças com o transtorno será notoriamente diferente do das crianças sem o transtorno.

Outro ponto falho na compreensão da interação social da criança com Asperger é que, diferentemente o estereótipo popularmente aceito, essa criança não necessariamente ficará isolada dos colegas o tempo todo, como se imagina que uma criança autista o faça. É frequente que desejem interação social, embora geralmente um a um (e não em grupos), mas estar junto não é sinônimo de boa interação social. É preciso observar a qualidade dessa interação. Crianças com Asperger têm enorme dificuldade em compartilhar um brinquedo, ceder a vez numa brincadeira, aceitar que perdeu num jogo, buscam sempre liderar e monopolizar, querendo que a outra criança brinque como elas impõem que seja e apenas com as coisas relacionadas ao seu foco de interesse, algo muitas vezes excessivamente repetitivo e desinteressante para os colegas, além de poderem reagir agressivamente quando contrariadas.

Mais um fator que dificulta a percepção do quadro pela escola é que a maior parte dos rituais (“manias”) e comportamentos repetitivos que a criança apresenta estão vinculados ao ambiente do lar, ou seja, a maior parte desse tipo de comportamento acontece em casa, longe dos olhos da escola. No entanto, o professor, que é quem passa mais tempo com a criança na escola, é a pessoa mais propensa a perceber certas repetições no comportamento que certamente existirão no ambiente escolar também.

Uma vez que a criança esteja no lado leve do espectro, não apresentará os sinais clássicos mais evidentes de autismo. Se houver outras crianças com autismo ou outras necessidades especiais na escola, como é comum, a comparação será imediata, e se o grau de severidade de comprometimentos dessas crianças for maior que o da criança com Asperger, o que é quase sempre o caso, pois crianças portadoras de necessidades especiais mais severas tendem a apresentar problemas acentuados na fala, locomoção ou déficits no intelecto, problemas esses que a criança com Asperger não tem, a criança com Asperger tenderá a receber muito menos auxílio, pois o quadro dela sempre parecerá pouco importante nesse tipo de comparação.

É comum nesse contexto que a criança com Asperger acabe desenvolvendo fobia escolar e fobia social, que a impeça de frequentar a escola. O número de famílias de crianças com Asperger e outras formas de autismo que optam por homeschooling (ensino em casa) é significativo, denunciando o despreparo das escolas em atender as necessidades especiais dessa população.

Sem dúvida, a menor gravidade e consequente menor necessidade de auxílio é verdade em muitos aspectos, mas não podemos nos esquecer que a criança com Asperger, quando comparada às crianças sem qualquer transtorno, terá sempre um déficit com potencial para causar problemas consideráveis, sendo também portadora de necessidades especias. São problemas significativos, embora de natureza diferente.

Quanto mais nova a criança, mais difícil pode ser a detecção dos sinais, pois muitas de suas excentricidades serão explicadas sob a ótica da “idade”. Os pais ouvirão que crianças de 3 anos fazem muitas birras mesmo, que algumas não dividem seus pertences, que são tímidas, que choram muito, que também são apegadas a um objeto especial, que podem ter certas manias, que podem ter dificuldade no desfralde e que não compreendem o mundo social e não utilizam a comunicação adequadamente.

Até certo ponto, isso não deixa de ser verdade, afinal, a linha divisória entre desenvolvimento típico e atípico nunca é tão óbvia ou bem demarcada, e crianças típicas podem apresentar um ou outro comportamento desadaptativo, sem que necessariamente tenham algum distúrbio, assim como crianças com algum distúrbio certamente apresentarão muitos comportamentos típicos, ou seja, de crianças sem qualquer transtorno ou síndrome.

Assim, o fator determinante para estabelecer a existência de um distúrbio do desenvolvimento como o autismo, geralmente está na intensidade e duração do comportamento.

Uma criança com desenvolvimento típico (saudável) pode cismar em brincar de passar uma bolinha por uma argola por alguns dias a fio, ou mesmo ter um interesse acentuado por dinossauros, por exemplo, mas certamente aceitará brincar também de bola ou carrinho com os colegas e rapidamente substituirá a brincadeira da argola com a bolinha por alguma outra coisa em breve. Porém, uma criança no espectro autista poderá brincar com a argola e a bolinha por meses ou anos, recusando outras brincadeiras ou mesmo demonstrando irritação quando os colegas não desejam brincar do que ela quer.

O interesse específico que certamente possuirá (como dinossauros, trens ou mapas, por exemplo) possivelmente alcançará níveis exagerados, de forma que só fale disso o tempo todo e se feche para qualquer outro assunto que não seja o seu interesse central, isolando-se, assim, do grupo ou sendo isolada por ele.

Uma criança típica manifestará crises de birra por não ganhar um brinquedo que gostaria ou por ter que encerrar a partida de videogame para fazer a lição de casa, mas uma criança atípica poderá manifestar uma birra muito mais duradoura e potente frente a um estímulo muito menor, e com muito mais frequência, por motivos que muitas vezes não são compreendidos do ponto de vista das outras pessoas, como, por exemplo, ter uma explosão emocional porque a pontinha da folha de papel amassou, o tênis saiu do pé, alguém colocou a caneta que ela estava usando 10 centímetros mais para a direita ou guardou o estojo de lápis do lado errado da mochila.

Como é possível perceber, a falta de informação pode gerar inúmeras suposições equivocadas e ser muito prejudicial, tanto para a criança, quanto para a família, pois ambos necessitam de muito apoio e compreensão.

O trabalho com a escola precisa ser muito bem discutido, pois muitas das abordagens típicas com crianças para os problemas comuns da infância poderão agravar o quadro da criança com Asperger. A abordagem “linha dura” é uma bomba para essas crianças e não só não resolve a maioria dos problemas que apresentam, como ainda serve de pólvora para a explosão e desestruturação interna.

Os muitos rituais e exigências que apresentam são, na verdade, recursos psíquicos para lidar com os déficits de sua condição, pois o que a maioria dos coleguinhas vai experimentar como divertido ou agradável, será fonte de grande incômodo para a criança com Asperger, que passará boa parte do período na escola tentando administrar o caos interno silencioso em que está imersa. É preciso reconhecer os “gatilhos” que disparam suas angústias e provocam stress e tentar adaptar o ambiente o quanto for possível para minimizar o surgimento de situações que desestabilizem a frágil organização interna dessa criança. Tais cuidados são fundamentais para que se garanta um melhor rendimento acadêmico e convívio social, evitando que a criança com Asperger se feche perigosamente numa bolha.

Crianças com Autismo Serão Adultos com Autismo

Indivíduos com autismo leve enfrentam inúmeras dificuldades no dia a dia. Como tais adversidades não são óbvias, eles acabam passando longe do radar diagnóstico, e muitos nunca chegam a receber um. Não é incomum que até mesmo as pessoas de convívio próximo sequer imaginem que aquele indivíduo esteja no espectro autista, e, muitas vezes, a própria pessoa, já adulta, desconhece sua condição.

Essas pessoas não diagnosticadas são, com frequência, taxadas de excêntricas, complicadas, estranhas, alienadas, emocionalmente instáveis, imaturas, desorganizadas, desatentas, distantes, frias, rudes, preguiçosas, antissociais, egoístas ou “cheias de frescura”, e mais uma infinidade de outros rótulos morais injustos gerados pela incompreensão, intolerância e falta de informação. As dificuldades são muitas: empregos e relacionamentos são afetados, a sensação de isolamento e não pertencimento oprime, a batalha contra os transtornos de ansiedade é árdua, o sentimento de culpa, desconforto, insatisfação crônica e depressão são desafios constantes.

O indivíduo que tem autismo leve vive um paradoxo, uma contradição, pois o fato de sua condição não ser evidente para os demais gera uma faca de dois gumes: por um lado, a não obviedade dos sintomas certamente tem suas vantagens numa sociedade como a nossa; por outro, o sofrimento que ele pode vir a enfrentar, especialmente se não tiver o apoio necessário, certamente não deverá ser classificado como leve. Como seus problemas não são facilmente percebidos pelos outros, este indivíduo poderá não contar com a compreensão alheia quando tanto precisa. Será cobrado por um desempenho típico (de pessoas sem um transtorno) e julgado – em vez de compreendido – por seus aspectos atípicos e consequente dificuldade no cumprimento dos papéis que lhe são atribuídos.

O mesmo vale para as crianças, que antes de se tornarem esses adultos, sofrem com as questões pertinentes à sua faixa etária. São deixadas chorando por horas na escola, não têm suas peculiaridades respeitadas ou mesmo percebidas, são chamadas de mimadas e frescas (principalmente quanto à alimentação, pois crianças autistas têm acentuada seletividade alimentar, o que dificulta aceitarem variedades de alimentos ou modos de preparo), são forçadas a situações difíceis – especialmente as sociais – , como recreios em pátios lotados e barulhentos, aulas de educação física, brincadeiras em grupo ou apresentações verbais de trabalhos escolares para a turma toda, tornando seu dia-a-dia um terror sem fim, o que pode ser muito perigoso, pois o risco de agravamento dos problemas aumenta exponencialmente.

Esse material tem como principal objetivo contribuir para a divulgação de informação, pois uma sociedade mais justa, desenvolvida e que acolha seus integrantes depende sobretudo do conhecimento. Entendimento gera empatia e empatia gera amor, respeito e tolerância, que são as coisas que mais necessitamos nos dias atuais.

Pessoas autistas merecem ser compreendidas, não somente por serem humanas assim como todos nós, com suas forças e fraquezas, mas também por que geralmente são pessoas que têm bondade no coração, que são capazes de sentir amor e compaixão, e que são, quase sempre, incompreendidas e vítimas de julgamentos injustos, muitos dos quais provêm de aspectos da nossa cultura que são nocivos para todos, como o excesso de comparação entre as pessoas, a dissimulação, a hipocrisia e a intolerância.

“Pessoas autistas certamente têm muito a ensinar ao nosso conceito de normalidade social. ”  Audrey Bueno

Enquanto autistas foram descritos como “vivendo em um mundo próprio”, como se outros não existissem, aqueles com Asperger foram descritos como “vivendo em nosso mundo, à sua maneira”. (Extraído do livro “Aprendizagem, Comportamento e Emoções na Infância e na Adolescência – Uma Visão Transdisciplinar” – Elisabete Castelon Konkiewitz (Org.) editora UFGD, 2013)